28 de setembro de 2005

Os velhos e a cidade

Ontem, 9H30 da manhã. Dirijo-me a uma caixa Multibanco. À minha frente uma pessoa espera e outra está na caixa. A da caixa era uma velhota – palavra que prefiro a idosa. Após várias manobras para dominar a máquina e crescendo a impaciência da que estava à minha frente e se calhar a minha, a velhota abandona a máquina. Mas permanece por perto, para acabar o que começara. Justifica-se vagamente pela situação, talvez para mim, talvez para ela própria, balbuciando uma justificação algo atabalhoada. Qualquer coisa do tipo: «Vou demorar muito tempo». A outra serve-se e vai à sua vida, mergulhando na multidão anónima da cidade. Já só estou eu e a velhota. Troco um olhar e aceno-lhe para que vá. A economia das palavras e dos afectos. E ela, novamente: «Vou demorar muito tempo». Avanço eu. Entretanto chegam mais duas pessoas e a velhota ali. À saída resolvo-me finalmente a ter um tratamento humano. Com um sorriso de entrada, avanço um: «Precisa de ajuda». E ela aceita, o sorriso e a ajuda, retribuindo-me timidamente. E diz-me qualquer coisa do tipo: «Não estou a conseguir». E eu, finalmente, mais humano: «Não há problema. Meta o cartão, introduza o código e eu depois ajudo-a a fazer a operação». Ela assim faz. No entrementes, os dois recém chegados olham com ar de quem diz: «e eu que pensava que era só este e agora é também a velha». Há olhares assassinos. Falam mais do que a boca. Ainda no entrementes, o meu pensamento já estava noutro lado. Porém, a velhota chama-me de novo à situação: «Queria fazer um levantamento a crédito». Comecei a perceber. Ajudei-a. A máquina informa: «Sobre o valor a levantar será cobrada uma taxa acrescida» ou qualquer coisa semelhante. Os «onzeneiros» que gerem a máquina não perdoam. A velhota selecciona o valor: 20€. Um compasso de espera e a máquina dá-lhe uma nega: «Não é possível efectuar a operação». Digo à velhota: «O problema não é seu, nem da máquina, terá mesmo de ir ao banco ver o que se passa». Ela agradece-me mais com o olhar do que com a boca e vira costas. Também eu vou à minha vida e mergulho na multidão anónima da cidade. Os jornais, os títulos, um telefonema anulam e arquivam a situação. A cidade traga-me. Várias horas depois, num momento de pausa, recupero a situação – curiosos estes fenómenos do cérebro humano - e pergunto-me: «Será que a velhota conseguiu o dinheiro? Para que seria? Porque não tomaste uma atitude e avançaste com aquele dinheiro que não te fazia falta nenhuma?». Contra o esquecimento, pelo menos escrevo. Gostava de voltar a encontrar a velhota. Talvez ainda haja esperança para os humanos...

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3 Comments:

Blogger Curiosa said...

Excelente artigo, não só pela qualidade descritiva da situação, que nos consegue reportar até esse tempo e espaço, mas também pela atitude em si, algo que nos dias de hoje já não se vê, as pessoas tratam os mais velhotes como se fossem algo indesejado e dispensável, sem nunca se lembrar que também lá chegarão e também terão os mesmos olhares assassinos…Crónicas de uma sociedade dita civilizada mas cada vez mais perdida, esperemos que ainda haja a tal esperança para os humanos…

quinta-feira, setembro 29, 2005 12:19:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

às vezes não temos a presença de espírito suficiente para fazer aquilo que, posteriormente, achamos que teria sido o mais correcto. Mas pelo menos ter essa lucidez "a posteriori" já é um bom sinal. Quando a nossa consciência nos avisa.

sábado, outubro 01, 2005 2:03:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Obrigado por Blog intiresny

sexta-feira, novembro 20, 2009 11:00:00 da manhã  

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