A luta dos afectos em Brokeback Moutain
O Pólis&etc. não costuma abordar aqui factos ou situações para os quais não tenha algo de próprio a dizer. Não vale a pena baralhar e voltar a dar. Não vale a pena repetir o que os outros disseram por outras palavras. Faz-se, hoje, uma excepção, a «pedido de várias famílias» - a bem dizer de uma única família – leitora deste blogue – ia a dizer leitora atenta, mas não sei se o será. Refiro-me ao filme-escândalo da temporada, O Segredo de Brokeback Moutain. A palavra «segredo» é da tradução portuguesa que tem sempre de «inventar» qualquer coisa. O título original é só Brokeback Moutain, e chega. Eu presumo, mesmo, que o convite à escrita sobre este filme é assim uma espécie de presente envenenado. Para ver se se apanha qualquer «esqueleto atrás do armário», talvez com um fundo vagamente voyeur... O Pólis&etc. foi ver a fita. E gostou. Gostou pelo tratamento da questão da homossexualidade que é abordada com sensibilidade e delicadeza por Ang Lee. Cá está algo que todos andam a dizer e eu repito. É o que acho, de facto. As personagens principais, Ennis del Mar e Jack Twist, vão «crescendo» e ganhando densidade ao longo do filme. Ou nós vamo-nos adaptando a elas, compreendendo-as e aceitando-as. Admito, aqui, que isto possa ser um preconceito masculino. A primeira cena de envolvimento dos dois foi incómoda – há que dizê-lo – para a minha heterosexualidade, julgo que talvez pelo seu lado mais «animal», pelo desejo sexual em estado puro. E por ser a cena mais explícita de todo o filme. Tudo o resto, não. O desenvolvimento subsequente do filme é o crescimento do afecto e a luta pela sua assunção, contra o preconceito. E é mesmo muito curioso, a aprendizagem dos afectos feita por Ennis, dos dois, o cowboy mais terra-a-terra, mais desajeitado. Jack sempre havia sido homossexual, Ennis é apenas alguém à procura de afecto. O ambiente fechado e concêntrico das montanhas, como é aquele em que Ennis e Jack partilham, acaba por tornar normal a aproximação daqueles dois homens, pelo que não espanta o que aconteceu. A evolução posterior representa a assunção possível daquele sentimento numa certa América. Ambos foram até onde era possível. A fotografia e a caracterização são magníficas. As casas, as roupas e os ambientes daquela América interior e rural estão ali retratados ao pormenor e não são só as montanhas do Wyoming, são também os velhos ranchos decadentes, os cenários urbanos das pequenas cidades do Texas, aquela rua de prostitutos no México. Uma das cenas finais, quando Ennis vai falar com os pais de Jack, é muito bonita e cheia de «silêncios que falam», muito bem geridos por Ang Lee. A mestria da realização - daí o óscar - vê-se bem nos pequenos pormenores, como na cena do Natal nas famílias de Ennis e de Jack, em que a ligação entre uma e outra é feita pelo trinchar do peru: a cena «viril» com o sogro de Jack, apesar de «puxar» para o estereótipo americano, não aborrece. Os flashbacks à infância de Ennis enquadram-lhe o perfil que nos permite a compreensão plena do personagem: a cena em que um homossexual local aparece morto é marcante... Em resumo, o filme merece atenção e aconselha-se...
P.S. - Uma crítica para a fábrica de fazer dinheiro e de apresentar filmes em que se transformaram as novas salas de cinema (chamam-lhes multiplex)... Sem excepção... Nunca me hei-de adaptar a isto... Salas todas iguais, quadriláteros que não se distinguem uns dos outros, onde se encafuam umas centenas para ver um filme... Não há intervalos, quer seja o Segredo de Brokeback Moutain, quer seja o Ben-Hur... As pipocas são omnipresentes... Não há espaços de convívio, dignos desse nome... Ir ao cinema já não é um ritual… Um dia voltaremos a este tema, nós que crescemos a ver cinema nas velhas salas de Lisboa... Resta dizer que fomos ao El Corte Inglês.
9 Comments:
Ora aqui está um filme que me pelava para ir ver :), visto que há séculos que não vou ao cinema...Agora a vontade está mais aguçada por esta excelente discrição de toda a essência do filme...
Multifacetado este blogue, passando agora pela avaliação cinematográfica, excelente… :D
Pois é, cara Curiosa, por aqui fala-se literalmente de «tudo»... É o &etc. do Pólis... ;-)
Muito bem, cara Luar... Comentário bem «blindado» à crítica! Se a Prevenção Rodoviária funcionasse assim tão bem, não havia acidentes nas estradas portuguesas! Posso presumir que a minha opinião é objectiva e insuspeita?! Ou nem tanto?! Creio que não precisa de fechar os olhos, pode mantê-los bem abertos... Julgo, mesmo, que a(s) parte(s) «bouleversant» não a afectarão... Para tal era preciso que tivesse algo que manifestamente não tem... E que o usasse da forma mais natural... Não sei se achará isto uma profissão de fé, mas devo dizer-lhe que, apesar da minha educação católica, nunca cheguei a fazer a «profissão de fé»...
Mas gostei do comentário... E não é fácil «pegar-lhe»... Faz jus à sua formação, sim senhor!
Não vi o filme e o tema, francamente, não me seduz. Fui ver, isso sim, o "Match point", mais uma grande obra do Woody Allen, e estou a ver se apanho o Munich antes que saia. Já vi o Syriana e não achei nada de especial. Bom é o "Boa noite e boa sorte".
Quanto a esse detestável hábito das pipocas, já fiz um post há mais de 2 anos, e neste momento apenas encontro dois cinemas em Lisboa livres dessa praga: Fonte Nova e Twin Towers. Corte inglês, todos os Lusomundo, até o Alvaláxia, lá temos que levar com os insuportáveis ruminantes!
Faz, então, parte dos «insuportáveis ruminantes» de que falava, e bem, o Kroniketas?! Enfim, se as «trincas» forem dadas cá fora, antes da fita, ainda vá... Mas estar sentado ao lado de um ruminante! É que o cinema não é propriamente a nossa sala de estar... Estranho é essa atitude vagamente do tipo «Maria vai com as outras»?! Se este blogue fosse um horóscopo, dir-lhe-ia para tomar cuidado. Não vá dar-se o caso de generalizar essa atitude noutras áreas da sua vida, cara Luar... É que em certas coisas, não há nada como uma boa profissão de fé, para separar as águas...
Pois é, eu dos premiados ainda só vi as «Memórias de uma gueixa» e agora este... Quero ainda ver o «Boa noite e boa sorte» e o «Capone»... E, quem sabe, o «Match Point». Quanto à praga das pipocas está tudo dito... Voltarei ao tema das minhas idas ao cinema na infância e na adolescência, em melhor oportunidade...
Humm, parece que pelo menos precisa de dizer que não precisa... :-)
Pois, cabe aqui a alguém pôr um bocado de ordem na casa, e nesse caso são os pais. Para ser muito claro, para mim não existe isso de "a minha filha a não dispensar o seu consumo", simplesmente porque ao pé de mim não há pipocas. A mim ninguém me pede pipocas porque nem sequer têm hipótese de se habituarem a isso. Era o que faltava os pais terem que alinhar em todos os adereços estapafúrdios que os americanos nos impingem... Esta é uma das situações em que, como se vê, muitos pais se demitem do seu papel!
Pois é, mas para termos os bons filmes não somos obrigados a levar também com o lixo!
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