Língua portuguesa – liberdade ou prisão?
A propósito da posição do Pólis&etc. face à Língua, já por aqui conhecida de outros postes, transcrevemos da obra Língua e liberdade, de Celso Pedro Luft, um curiosíssimo texto de Luís Fernandes Veríssimo, que, aliás, serve de mote a toda a obra. Nela, Luft discorre sobre o modo de ensinar o Português, as noções de Língua e de Gramática, a obsessão gramaticalista da regra, da ortografia e do «politicamente correcto» em termos linguísticos, que também existe, como bem sabem as Krónikas Tugas, a falsa crença de que – como diz – ensinar uma língua seja «ensinar a escrever certo», defendendo que uma língua viva é uma língua em constante evolução, abandonando e/ou incorporando de forma natural novos vocábulos, defendendo sobretudo a prática e o manejo da língua em detrimento do ensino estéril baseado na aprendizagem da Gramática.
«O gigolô das palavras
Luís Fernando Veríssimo
Luís Fernando Veríssimo
Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua. Cada grupo portava seu gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com as suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, às pressas, minha defesa ("Culpa da revisão! Culpa da revisão!"). Mas os alunos desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o Veríssimo errado? Não. Então vamos em frente.
Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer "escrever claro" não é certo mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover... Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.) A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura.
Claro que eu não disse tudo isso para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas - isto eu disse - vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família nem o que os outros já fizeram com elas. Se bem que não tenha também o mínimo escrúpulo em roubá-Ias de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.
Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria a sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.»
3 Comments:
Não concordo minimamente, aliás discordo em toda a linha. O próprio autor se desautoriza na matéria pelo modo como revela a sua relação com a língua. Se fosse assim valia tudo e ninguém se entendia.
Claro, claro... Calculei, calculei... :-)
O autor nesse texto de forma irônica e humorizando,não desmerece a normas gramáticais culta,mas sim as crítica quanto ao uso exessivo da regras e não da lingua,não podemos desconsiderar que um falante da língua martena prenda-se somente as suas regras e desmereça a fala em si,uma vez que a lingua é viva e evolui,criam-se novas expressões,acrescenta-se novas palavras,e a escola gramaticalista trato-nos e julga-nos pelos nossos erros e não pelo conteúdo,haja vista que determinados grupos tem suas caracteristicas,expressões,fonética e sotaque a lingua faz parte de um todo não somente á gramatica,devemos trata-la como evolutiva e não como algo mortal,corrigindo os "uai" "Oxente" e não a essência de uma expresão de uma região, "A língua deve apanhar todos os dias para saber quem é que manda" Não podemos prender-nos a certo e errado gramaticalista, a língua é viva assim diferente de seus falantes ela é imortal.
Enviar um comentário
<< Home