22 de julho de 2009

Crónica de costumes e hospitalar I

Há uns meses parti um braço num estúpido acidente doméstico. Estúpido, como estúpidos são todos os acidentes. Com dores que anteviam qualquer coisa de mais grave, fui à urgência do Hospital de S. José. Papéis, triagem e sou conduzido à ortopedia. Fui, então, atendido por uma parelha de médicos: um jovem com uma barba rala, um bocado escorrido, e ainda a adoptar a pose de médico, e um outro mais pesadão, de bigode grisalho, já no segundo terço da vida, sem nenhuma pose de médico. Na verdade, o jovem esquálido é que me atendeu, o pesadão grisalho apenas supervisionou e ajudou. Apesar do meu estado, deu para perceber o bom relacionamento entre os dois e sobretudo entre o pesadão grisalho e as enfermeiras, informal e próximo, com chistes e trocadilhos constantes. Simpatizei com ele. Sem dúvida uma boa companhia para os copos. Cá para mim, deve ser o tipo que no grupo conta as melhores anedotas, o dínamo da festa, aquele cujo riso e forma de estar modela a atitude do grupo.
Tenho a mania de ter sempre opinião sobre muita coisa que resulta apenas da necessidade de compreender e nada mais. Quando é de área que conheço, pode ser assertiva. Quando é de área que não conheço, é geralmente modalizada. No caso, como era o meu próprio diagnóstico e como não sou médico, foi obviamente modalizada. Expliquei o acidente e disse ao esquálido que aquilo me parecia ser distensão muscular, rotura de ligamentos ou coisa parecida e não fractura, tomando como exemplo a experiência de uma outra fractura antiga de um outro membro. Esta informação destinava-se a ajudar o esquálido a fazer o diagnóstico e não a alardear nenhuma opinião científica ou até empírica. O esquálido mandou-me fazer um raio X. Resultado: fractura. Ao comunicar-me a coisa, o esquálido não perdeu a oportunidade para fazer vincar a sua superioridade e disse-me com ar paternalista: «o senhor tem uma fractura y. Está a ver! Para alguma coisa nós estamos cá, estudámos e sabemos mais.» A que se seguiu a solução clínica para a coisa: imobilização com tala gessada.
Pensando no assunto, ainda fiz um flashback, tentando perceber o que levara o esquálido àquele remoque. Debalde. Não encontrei nenhuma boa razão. A não ser que ele esperava que eu apenas me queixasse de dores e deixasse o diagnóstico para ele. Mas aquele comentário era escusado, porque eu nunca pus em causa o douto saber do esquálido. O que disse foi que «me parecia». E como se viu até «me parecia mal». Isso deveria ser o bastante, para ele. É notável que mesmo numa relação assimétrica como são todas as relações médico/doente: eu estava doente e ele são, o esquálido tenha tido a necessidade de atirar a sua competência e o seu saber para cima de mim. Resta dizer ainda que não achei o esquálido mau médico e teve até vários aspectos positivos: explicou-me tudo com algum detalhe e foi globalmente simpático.
Entretanto, fiquei a saber, pelos jornais, que existe uma pós-graduação qualquer na área da saúde em que há a cadeira: Comportamento e relação Médico-Doente. Pelo sim, pelo não, eu mandaria o esquálido fazê-la...

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3 Comments:

Blogger Politikos said...

Caro J.S. Teixeira. Não é por nada, mas o que se espera ao utilizar as caixas de comentários de um «post» específico é comentá-lo, não lhe parece?! Digo-lhe isto - note - com toda a simpatia pelo seu blogue, até porque já morei 10 anos no seu concelho e curiosamente lá votei, em tempos idos, no candidato do PS: um tal Caio Roque... No dia seguinte às eleições, o homem voltou à função de deputado pela emigração, não ficando como vereador, nem assumindo as responsabilidades que lhe cabiam perante os eleitores... Foi a última vez que votei nas autárquicas...

quinta-feira, julho 23, 2009 10:49:00 da tarde  
Blogger Luísa A. said...

Meu caro Polis, fico à espera da próxima crónica de costumes. Gostei imenso de ler esta, que descreve uma experiência por que quase todos já devemos ter passado. Tentamos ser explícitos, claros, incisivos na descrição das nossas maleitas para facilitar o diagnóstico – e a Internet até nos ajuda a caracterizar as situações –, mas parece que só conseguimos, com isso, criar impaciências. Desconfio, ainda assim, de que o problema não é estritamente médico, mas comum a todos os grandes especialistas, que devem gostar pouco de ver intromissões de leigos nas suas áreas de especialidade. Desconfio de que com os advogados, por exemplo, se passa exactamente o mesmo. ;-)

sábado, julho 25, 2009 12:51:00 da manhã  
Blogger Politikos said...

Caríssima Luísa. É como diz, realmente! O problema não é exclusivamente médico, mas nos médicos nota-se mais. São os seres que mais perto estão de Deus na Terra e lidam connosco sempre em situação de fragilidade. É bom, porém, que se vão habituando a relações mais horizontais com os doentes. Até porque, como diz e bem, estes estão cada vez mais informados. Designadamente, a Internet veio democratizar muito o acesso a saberes específicos. Note que antes para pesquisar um termo médico ou uma patologia ficavamo-nos pelas enciclopédias ou íamos a uma biblioteca pública ou especializada. Hoje, introduz-se o termo no Google e sai-nos tudo o que se faz no mundo sobre isso...

sábado, julho 25, 2009 3:52:00 da tarde  

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