27 de agosto de 2009

Julgamentos éticos ou cívicos

O que vou escrever é polémico. É mesmo uma heresia cívica.
Entre nós tem ganho raízes a ideia politicamente correcta e absolutamente indiscutível de que os julgamentos não se devem fazer na rua, na praça pública, mas sim nos tribunais. Vimos isso escrito e dito até à exaustão. Não há nenhuma dúvida de que isso é – e bem – um traço civilizacional característico dos Estados de Direito e da Democracia. É o que nos protege da prepotência, da discricionariedade, do arbítrio.
O problema é que o encaramos, ou assim nos vendem acriticamente a ideia, como uma espécie de dogma absoluto. Numa época que nada é absoluto e tudo se discute, até mesmo, em certas circunstâncias, a vida humana.
Ao mesmo tempo que isto acontece, queixamo-nos cada vez mais da impunidade generalizada. E não pensamos que bastas vezes os tribunais não condenam, não porque alguém seja inocente, mas apenas porque não ficou provado com prova blindada, e muitas vezes até, porque, apesar de provado, a prova não pôde ser aceite por um qualquer formalismo do sistema.
Esta conversa da rua e da praça pública é em si mesmo hoje um anacronismo inverosímil. Desde logo, porque hoje em dia não se lincha, nem se apedreja ninguém na praça pública. Além de que a praça pública, seja lá o que isso for nos dias de hoje, também não mete ninguém na cadeia.
Por detrás disto, está uma construção utópica: um Estado de Direito ideal e omnipotente, único agente da realização de Justiça que absolve ou aplica penas, geralmente de privação de liberdade. O que remonta a um tempo em que o Povo ignaro aceitava e depois delegava nos tribunais a capacidade de fazer Justiça. Entre nós, isso está ainda mais presente, já que nunca ganhou raízes, provavelmente por razões de base cultural, o sistema dos tribunais de júri, em que verdadeiramente o Povo é chamado a decidir. Nesta matéria, o Povo sempre foi posto de parte e sempre se colocou à parte, até porque percebe mal o sistema e as suas regras. Importa, porém, não esquecer que a capacidade de julgar é nossa enquanto colectivo, é administrada em nosso nome e nós delegámo-la.
Entretanto, apareceram media capazes de em tempo útil investigar e apresentar factos e opiniões públicas capazes de os avaliar e discernir e separar o trigo do joio. Ao mesmo tempo, a Justiça tem-se vindo a deteriorar, enredando-se em garantismos, formalismos e longas tramitações processuais. Serva da aplicação da Lei mas não da realização da Justiça.
E se o Estado de Direito, mesmo com todas as suas falhas, é um bem que nos defende da discricionariedade e do arbítrio, também permite e cada vez mais a impunidade. No que respeita aos novos crimes, ela então é quase total.

Há pois que dentro do sistema – incluindo-se aqui o legislador e o aplicador – fazer um balanço entre direitos e garantias e impunidade, fazendo pender em certos tipos de crime mais a balança para um dos lados, consoante o grau de impunidade publicamente percepcionado. E fora do sistema, em prol dos mesmos valores civilizacionais que o Estado de Direito procura defender, cabe-nos ir incorporando sem dogmas bacocos a capacidade de publicamente julgarmos, juntando aos julgamentos dos tribunais, que podem conduzir a penas, os julgamentos de cidadania ou éticos, que aplicam sobre os mesmos factos a pena da censura social e cívica. E isto é válido quer para os políticos, por exemplo na constituição de listas de deputados e nas escolhas de autarcas, quer para os cidadãos nas escolhas para as organizações da sociedade civil. É que essa também é uma forma de credibilizar a democracia e o Estado de Direito. Tanto mais que o Povo ignaro de outrora já não existe…

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4 Comments:

Blogger Luísa A. said...

Não é nada polémico, meu caro Politikos. Pessoalmente, reivindico o direito de julgar para além da Justiça, reconhecidamente inoperante. Não julgo, naturalmente, sobre factos e responsabilidades específicas. Mas julgo sobre um curriculum, sobre um carácter revelado ao longo de um período de observação mais ou menos longo e sobre os fumos e as fuligens que pairam no ar e o enodoam. Não constituo arguidos, nem declaro culpados, mas tenho os meus suspeitos. E não voto em quem não esteja acima das minhas suspeitas. ;-)

domingo, agosto 30, 2009 1:49:00 da tarde  
Blogger Politikos said...

Minha cara Luísa, o «post» refere-se ao julgamento de factos e responsabilidades específicas, sobre os quais eu acho que posso e devo julgar. Aliás, o julgamento de carácter assenta em boa parte no julgamento de factos...
Sobre o voto, confesso que fiquei curioso sobre o sentido do seu nas próximas legislativas... ;-) Desconfio que vai «pôr a cruzinha» na criatura que disse que a crise internacional foi um abanãozinho e meteu nas listas o «homem da mala e do braço ao peito»... ;-)

segunda-feira, agosto 31, 2009 11:36:00 da manhã  
Blogger Luísa A. said...

Quente, quente!!! ;-D

segunda-feira, agosto 31, 2009 2:16:00 da tarde  
Blogger Politikos said...

Oh, Luísa, caríssima! Vai, então, ser no «homem das feiras, da lavoura, dos remédios e dos casacos de botões dourados» (Deus me perdoe a má-língua que também tenho dois, diz-me aqui ao ouvido o Anti-Politikos, mas como não uso botões de punho, estou perdoado). Pois, seja! Esperava um pouco mais de solidariedade de género para com a «velha senhora»... Mas, antes assim, cara Luísa, antes assim...

segunda-feira, agosto 31, 2009 10:59:00 da tarde  

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