Chão de terra batida…
Quando há três anos voltei a Lisboa, após um interregno de dez, e fui morar para uma zona diferente daquela em que sempre morei, desde logo reparei, no percurso que todos os dias faço, atravessando uma parte da Lisboa antiga, numa velha taberna que estoicamente resistia ao passar dos anos. Decerto uma renda antiga, decerto alguém em idade de já não conseguir fazer diferente do que sempre fez. Duvido que aquele negócio desse lucro. Sempre que passava de autocarro, reparava nela. Um velho e decrépito prédio do princípio do século passado. Portas de madeira pintadas e repintadas de castanho escuro, estafadas. Lá dentro, mesas surradas com tampos de mármore de dois dedos de altura, cadeiras de madeira cansada e alguns bancos corridos. Uma gaiola pendurada à porta. Um grande balcão de mármore e tábua lateral que se levantava para entrar. Velhos barris de madeira por trás. E, mais do que tudo, chão de terra batida, negra da sujidade de anos... Era quase uma adega de quinta, no centro da cidade... Um qualquer calendário e um relógio chinês de quartzo eram os únicos adereços que nos lembravam estarmos em 2007. Nunca consegui divisar bem o proprietário, mas lembro-me bem dos clientes, que nas roupas, penteados e bigodes parecia terem parado nos anos 60, 70, ou antes. E sempre, mas sempre, que ali passava, lembrava-me de uma velha tasca, igualmente com o chão de terra batida, que existia na rua da Academia das Ciências onde, há mais de 20 anos, eu, jovem estudante, e um velho confrade de certas lides, após assistirmos às sessões da vetusta Academia, escorropichávamos um copo de vinho – da casa, claro: havia outro?!?!? – e uns carapaus fritos, ali mesmo na hora, secos em papel pardo com riscas azuis ou na falta dele, em papel escuro do açúcar Sidul… Essa há muito desapareceu. Esta fechou há umas semanas… Uns tapumes de madeira cobrem agora a velha porta… Foi também um pouco de uma certa Lisboa e um pouco de mim que ali ficou entaipado…
11 Comments:
Pois, caro Politikos, estava longe de imaginar que alguém tão afeiçoado ao progresso – tão progressista, portanto – pudesse chorar a perda de uma taberna em chão de terra batida, que nunca respeitou, decerto, os ditames da higiene e da segurança alimentares por que hoje se rege qualquer estaminé condigno. Tenho curiosidade em saber que «parte» de si ficou «emparedada» na tasca; que saudade é essa de uma Lisboa um tanto sórdida, de bebedeiras e «bas-fond», que escusava, talvez, de algum dia ter existido.
O meu caro Politikos não estará com saudades da sua juventude? A mim de vez em quando acontece-me. A tasca morreu de morte natural. Ultrapassou em muito a esperança de vida.
Caramba, cara Luar, apoda de sórdido e de «bas-fond» uma pobre e simples taberna... Onde eu bebia um copito de vinho e comia uns carapauzinhos fritos... Isso é que ser politicamente correcto, hein! Espero, pois claro, que aí em casa já não se usem colheres de pau, em observância ao estrito rigor das regras comunitárias em matéria de higiene alimentar...
;-)
Acertou, cara Maloud, é a nostalgia da juventude perdida, agora que já vejo as minhas cãs avançarem a olhos vistos...
C'est la vie, c'est la vie...
Caro Politikos, sobre a questão da colher de pau, não só não sei se ainda consta da instrumentação utilizada na minha cozinha – não é este o meu pelouro doméstico – como desconhecia que estivesse condenada pelas regras comunitárias sobre higiene alimentar. Mas preocupada, como sempre estou, em manter-me na crista da onda, vou imediatamente pôr o assunto em pratos limpos!
Acabo de verificar que quem detém, cá por casa, o pelouro da cozinha também vive noutro século, caro Politikos, e lastima, do fundo do coração, o desaparecimento desse seu chorado monumento à velha restauração popular.
Como vê, cara Luar, estou bastante a par das «boas práticas» da restauração, apesar de não deter esse pelouro cá em casa...
;-)
Sim, sim, as colheres de pau há muito que não se usam cá em casa: agora são de plástico, e podem ser lavadas na máquina...
(infelizmente sou eu que detenho o pelouro da cozinha.... aliás, sem bem perceber como, detenho todos os pelouros domésticos...)
:-(
Quanto ao "post", gosto sempre dos que têm um conteúdo mais pessoal.
Dão-nos uma dimensão mais humana do "postador" e de nós próprios.
Confesso que fiquei com pena que a tasca tivesse fechado (embora nunca tenha frequentado tascas :-)).
:)
Cara Luar
Queira enviar s.f.f. um abraço solidário ao detentor do «pelouro da cozinha» aí de casa.
Tenha um bom feriado
Cara Atenas
Vejo-a completamente rendida à modernidade das colheres (ex)de pau assépticas, porém, apenas por razões pragmáticas: serem ou não laváveis na máquina... Aliás convirá agora rebaptizar as colheres de pau que afinal já não são de pau (digo eu)...
Tal como com a Luar, mas em sentido contrário, deixo-lhe o meu abraço solidário não por deter o pelouro da cozinha, mas por deter todos os outros... Descentralize, minha cara, descentralize...
P.S. - E com a história das colheres de pau, lembrei-me das da minha avó, cavadas, fundas e redondas, de madeira talhada artesanalmente...
Estou cada vez mais bota-de-elástico, dirá a Luar..., ou estou cada vez mais nostálgico, dirá a Maloud...
;-) :-)
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