25 de fevereiro de 2009

Technicolor

Num mundo onde tudo nos aparece muito digerido, muito pronto-a-vestir, muito «escolha uma opção», foi com gosto que vi o filme A Dúvida. Detesto coisas a preto e branco, pessoas a preto e branco, ideias a preto e branco. As coisas são sempre mais complexas do que isso. Foi, por isso, que gostei de ver A Dúvida e o tratamento que nela se dá ao tema da pedofilia. Sob o ponto de vista da análise, as coisas são vistas de diversos ângulos. Nenhum deles é o bom, nenhum deles é o mau. Há muita delicadeza no modo como o filme é feito e em como as coisas nos são apresentadas ou apenas ao de leve sugeridas. O estado de dúvida em que nós, juntamente com os personagens, estamos, também nos ajuda a perspectivar as coisas de outra maneira. E no fim, e apesar das capas que cada um de nós veste no seu dia-a-dia, resultado das nossas vivências, percebemos que até mesmo o mais empedernido de nós nunca é completamente a preto-e-branco…
É também dessa esperança na humanidade que nos fala o filme…

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22 de fevereiro de 2009

O que paguei…

O desenrolar do intricado novelo do caso Freeport que obviamente, e apesar do aparato cénico da constituição de arguidos, percebe-se, desde já, não vai dar em nada, trouxe a lume o preço da compra da casa do Primeiro-Ministro, no Edifício Heron Castilho, um dos bons edifícios de Lisboa. A casa, um apartamento com 183m2, foi escriturada em 1996 por 47 mil contos (235 mil euros). Dois anos antes, um apartamento com uma área ligeiramente inferior (175m2) comprado por um emigrante português, que por isso estava isento do valor de sisa, foi escriturado por 70 200 contos (351 mil euros).
O Público averiguou isto e perguntou ao PM: «A escritura de compra desse apartamento foi feita pelo real valor da transacção ou foi feita por um valor mais baixo para reduzir o encargo com o imposto de sisa ou por qualquer outro motivo?». A isto, o PM respondeu: «Adquiri essa fracção autónoma e a respectiva arrecadação por Quarenta e Oito mil e Quinhentos contos (obviamente, na moeda antiga), valor que corresponde à tabela de preços praticada na altura pela agência imobiliária e que é idêntico ao que foi praticado, do mesmo ano, na venda de outros apartamentos semelhantes no mesmo prédio.» E no final refere, «em face destes factos, qualquer insinuação no sentido do incumprimento das minhas obrigações fiscais só pode ser por mim considerada como caluniosa e difamatória.»
Acontece que alguns anos depois, num cenário bastante mais recessivo no que respeita ao valor das habitações passei um ano à procura de casa no centro de Lisboa. Durante esse ano, vi dezenas de casas, vi centenas de anúncios e familiarizei-me com os preços. Acontece que, tratando-se de um investimento vultuoso, o maior da minha vida até então, obtive aconselhamento profissional sobre o preço a oferecer por metro quadrado. E acabei por comprar, numa zona igualmente central e relativamente próxima daquela, um de andar de tipologia superior mas bastante inferior em área, num prédio que, apesar de razoável, não é de luxo, como o Heron Castilho, não tem aquela pátina, nem aquele cachet…
Sei pois que vi e o que paguei por um apartamento com uma área bastante inferior, em segunda mão, numa zona contígua e num prédio pior…


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11 de fevereiro de 2009

1100 milhões sem explicações

Numa decisão tomada ao domingo, de forma abrupta, e sem nenhuma discussão pública prévia, o Governo decidiu nacionalizar o BPN, em risco de falência iminente, devido a um buraco de 700 milhões de euros.
Para garantir os depósitos dos clientes, há um fundo próprio, pelo que não havia necessidade de proceder a nenhuma nacionalização.
Para evitar o efeito de contaminação e o abalo na confiança pública nos bancos, bastaria dizer-se que o BPN representa apenas uns escassíssimos pontos percentuais de todo o sistema bancário.
Se um sistema – qualquer que ele seja – se reduzir em uns poucos pontos percentuais, isso não põe em causa tudo o resto. Bastará afirmar-se e provar-se que os restantes 90 e muitos estão fortes.
Os números são o melhor dos álibis.
Há uns dias, porém, ficámos a saber que afinal o buraco não era de 700 mas sim de 1800 milhões de euros. Um pequeno erro de estimativa…
Sobre o primeiro facto, ainda ouvi as justificações dos responsáveis que, na altura, - e sem contraditório público – até me convenceram. Do segundo, já nem sequer ouvi qualquer explicação. Ou seja, sobre 1100 milhões, parece que ninguém se sentiu compelido a uma justificação. Segundo li, também, aquela cifra representa metade do custo do novo aeroporto…
Já sabemos que os números a partir de certos valores perdem verosimilhança...
Hoje, porém, e após anos de aperto e de se andar literalmente a rapar o tacho, por vezes de forma quase miserável, parece que, além de verosimilhança, os números deixaram de ter qualquer valor…

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7 de fevereiro de 2009

Cenários

Com todo o perigo que um raciocínio indutivo pode ter, confesso que fiquei algo chocado mas não surpreendido com o que ouvi esta semana numa reportagem numa das televisões. O tema era o fecho do Tribunal da Boa-Hora que irá para uma espécie de cidade judiciária na Expo. Entrevistados: juízes, procuradores, advogados, funcionários, utentes dos tribunais. O denominador comum foi o da nostalgia por abandonar aquele espaço cheio de História e de histórias. Até aqui, e apesar de tudo, tudo normal.
A dada altura, porém, um dos juízes entrevistados, Pedro Cunha Lopes, diz esta coisa espantosa: «Quer se queira, quer não, um julgamento é também um cenário. É óbvio que um prédio onde há escritórios, onde estão direcções-gerais – sem nenhum menosprezo por isso – conservatórias, serviços do Ministério da Justiça, não terá um peso tão profundo como ir à Boa-Hora». E logo depois, confrontada, com a pergunta, «Acha que a mudança para um edifício de escritório adaptado para tribunal isso transforma os juízes em funcionários públicos?», outra juíza, de seu nome Rosa Brandão, afirma peremptória: «Eu tenho algum receio disso, e até em conversa com alguns colegas meus, tenho algum receio disso…».
Ora estas duas singelas frases ditas com todo o à-vontade para a televisão, - e portanto já sujeitas aos crivos auto-censórios do «politicamente correcto», repare-se até como Pedro Cunha Lopes tem a consciência disso quando tenta corrigir o tiro ao sublinhar, «sem nenhum menosprezo por isso» - estes dois juízes corporizam, em dois aspectos, a decadência do sistema de justiça tal como ele existe:

1.º A hiper-valorização dos aspectos formais e ritualistas da justiça: no caso, os espaços, mas o mesmo se podia aplicar às vestes, à linguagem, etc.;
2.º A consciência de terem um estatuto superior ao dos restantes servidores públicos e quiçá ao de toda a sociedade.
A hiper-valorização dos aspectos formais – espaços e estatuto - em detrimento dos aspectos substantivos, como a efectiva utilidade social das suas decisões e do próprio sistema de que são os decisores finais, já para não falar de uma análise de custo/benefício de uma sentença e/ou de um processo, são germens da decadência do sistema.
Os cidadãos da Pólis de hoje olham para isto e não compreendem, apenas o aceitam com a mesma benevolência com que olham e aceitam a liturgia da Igreja Católica. Essa, porém, não é do poder secular e não interfere tão directamente na vida social.

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