MP3 or not MP3?
Hoje esqueci-me do MP3, e, portanto, voltei de novo à condição de observador. E acertei na mouche. Apanhei o autocarro do costume. Na paragem de sempre, uma ambulância mal estacionada impedia o autocarro de fazer uma curva. Chega uma segunda ambulância e os socorristas do 112, focados e alheios a tudo, apressam-se a ir socorrer alguém num prédio próximo. Julgo ter vislumbrado um desfibrilhador e outro material de reanimação. Um coração fraco na manhã da cidade. Sabe-se lá que drama pessoal e familiar! Uma das socorristas volta à ambulância para buscar mais equipamento. O autocarro estacado. O motorista impávido. As pessoas na paragem desesperam. E ninguém na paragem se lembra do coração fraco, só sabem que têm de ir, que têm de chegar, até um dia o seu coração forte virar fraco e estarem outros na paragem. A socorrista volta uma segunda vez à ambulância. E um dos meus companheiros de paragem, um indivíduo ainda novo dá uns passos, troca umas palavras com a socorrista e ele próprio entra na ambulância e estaciona-a uns metros à frente. Perante a postura bovina do motorista, já me havia ocorrido fazer o mesmo. Mas faltou-me a iniciativa, o último passo, a diferença essencial entre o fazer e o não fazer. Também não tinha pressa! Desculpo-me, claro! Olhei o homem e elogiei-lhe interiormente a iniciativa. No meu íntimo mais profundo, pensei que gostaria de ter sido eu a fazer aquilo. Um tipo de fibra: pensei. No outro extremo, a lesma do motorista: espécie de autómato urbano. Só ali está para conduzir o carro, não para cumprir horários, não para ter iniciativa, menos ainda para tomar decisões. Nos passageiros que entram, vai um indivíduo curioso. Reparei logo nele. Era uma espécie de réplica viva do Charlot. Rosto comum, ar tímido, envergonhado, quase pedindo desculpa de ali estar, roupas incaracterísticas, mas o bigode peculiar. O bigode destoava do retrato que dele compus. Já lá dentro, observo que fala um italiano manhoso e – pelo que percebo - faz-se entender mal com o condutor, que já se viu não ser grande peça para quaisquer tipos de entendimentos. A dada altura, e sem que nada o fizesse supor, uma brasileira atira alto: «ou compra bilhete ou sai; senhor motorista siga com o autocarro que estamos com pressa». Segue-se uma troca de palavras inconsequentes, do mesmo teor. Argumento para cá e argumento para lá. E o nosso Charlot volta-se para ela e começa a imitar animais: primeiro cacareja, depois grasna, depois ladra, tudo alto e bom som... Tudo com uma exímia perfeição e graça. Era outro homem, diferente do que vira há uns minutos atrás... Não consegui deixar de sorrir... Mas havia uma peça que não encaixava... O Charlot e a brasileira ainda trocam impressões. Ele amanha-se mal com o Português, ela replica já sem jeito, admirada com respostas com que não é capaz de lidar. O que ressalta, porém, são os registos, completamente diferentes. Não era só a língua que os separava. Era tudo. E vim a saber depois que o homem era suíço, e palhaço… E encaixei a peça...
Amanhã volto ao MP3…
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